Eduardo Marinho

por FELIPE DE OLIVEIRA NASCIMENTO

Eduardo Marinho em sua casa e oficina de trabalho.O educador Paulo Freire já dizia que não basta apenas a denúncia, mas também o anúncio de uma nova sociedade. Nesse mundo que cria situações sociais tão perversas, são muitos os angustiados, inquietos, mas poucos os que encarnam na própria vida a transformação que almejam. Em busca de uma existência mais harmônica, Eduardo Marinho teve essa busca como a prioridade de sua vida. Rejeitando o mundo burguês em que foi criado, preferiu a estrada, a integração com diversos tipos de pessoas, e encontrou na arte o meio de se expressar e trabalhar. Com seus desenhos e palavras, ele vem há décadas propondo reflexões, questionamentos, promovendo ideias à favor de uma sociedade mais solidária.

Eduardo Marinho nasceu no Espírito Santo, em 1960. Durante a adolescência, começou carreira militar e depois ingressou em um curso de Direito, que largou aos 19 anos para buscar outros caminhos. Atualmente, ele mora em Niterói e costuma expor seu trabalho aos fins de semana no Largo dos Guimarães no bairro Santa Teresa, Rio de Janeiro, e desde 2010 é convidado ocasionalmente para ministrar palestras. Pela internet, expõe suas vivências, trabalhos e ideias no blog Observar e Absorver.

O Voo Subterrâneo se encontrou com Eduardo Marinho em Santa Teresa, e contou com a parceria de Luciano Alencar, que nos acolheu em sua casa e contribuiu à entrevista com algumas perguntas. Confira, aqui, a entrevista completa, e abaixo alguns trechos.

INÍCIO DA CAMINHADA

Quando você era pequeno, adolescente, quais foram as principais ideias que te influenciaram?

Não sei. Eu era um “fora da curva” do meu meio. Os adultos não aceitavam as ideias que eu queria questionar. Quando eu questionava a existência da pobreza, a desigualdade, “por que tanta gente pobre?” eu não encontrava resposta em nenhum lugar.

Quando surgiram suas dúvidas, já nasceram contigo?

Não sei dizer. Primeira vez que fiquei chocado foi quando fui pagar promessa com minha mãe. Minha mãe fez uma promessa, conseguiu a graça, e foi distribuir pães na favela mais próxima, na Tijuca. E eu nunca tinha visto gente tão pobre tão perto. Foi a primeira vez que fiquei chocado. Eu vi um menino da minha idade me olhando com a mesma curiosidade com que eu estava olhando pra ele. Ali eu tive meu primeiro contato, foi isso que me despertou. Porque dentro de casa já me interessavam as empregadas, que elas falavam de um jeito que era diferente do meu meio.

É uma inquietação que está presente até hoje?

Não, não está. Hoje eu me sinto parte, eu fiquei muito íntimo. Já convivi de perto, aprendi os códigos de comunicação, pelo menos de boa parte.

Foi essa curiosidade, querer entender, que te levou a largar a faculdade e sair viajando?

Não. O que me fez sair da faculdade foi a angústia. Aquela era a fase de determinação da minha vida. Todas as opções que eu via na minha frente eu imaginava o caminho e logo eu via que eu não queria. Eram os caminhos convencionais, que é totalmente livre para escolher essas opções aqui. Não pode falar, “e aqui atrás?” “Não, não olha pra trás, não olha pro lado. Você é um privilegiado, não queira cair de classe”. E eu tentava me enquadrar, por que falar “não quero”, ia ser uma comoção, um conflito. Mas até que eu percebi que indo em qualquer daquelas opções eu ia me sentir muito mal. Vou procurar uma outra opção, e eu não tinha ideia de qual seria.

ROMPIMENTO COM A FAMÍLIA

Quando eu falei “vou fazer o que eu quero, vou pegar o que cabe na mochila e vou viver sem ter nada pra quer ver como é”, eu não previa o que ia acontecer. Podia saber que ia ser uma coisa bem grave por conhecer minha família. E aí foi bem grave pra eles mesmo, um desastre, um sofrimento imenso.

Foi essa tua maior barra, maior dificuldade?

Não, não foi uma dificuldade, foi um acontecimento doloroso. Eu fiquei triste, mas a rua me chamava atenção. Então era fácil focar o pensamento em outras coisas. Quando você está na rua, o tempo todo acontece coisas. E era muita coisa acontecendo ao mesmo tempo. Então de vez em quando eu lembrava da família e com o tempo eu fui lembrando cada vez menos.
Eu tenho muita sorte, vamos dizer assim, que nas situações mais bravas eu nunca lembrei da minha caminha, da minha segurança. Não era minha realidade. Nunca achei que foi uma perda, era uma fatalidade. Era uma perda, vamos dizer assim, mas não era aquela perda que ficava lamentando. Perdeu cara, acabou, olha pra frente, olha em volta, vive a realidade. Ficar pensando lá atrás pra sofrer agora? Que é isso cara, absurdo.

E como é hoje em dia essa questão do rompimento com a família?

Eu fiquei sendo uma pessoa estranha pra eles. Quando voltei a entrar em contato eles já estavam bem velhinhos. Meu pai viveu mais cinco anos só (desde que voltou a falar com ele). Minha mãe tem 93 anos. Hoje eu falo, visito, almoço com ela.

INFLUÊNCIA HIPPIE

Voltando à questão das influências. Artistas, por exemplo…

Muitas influências. Influências cotidianas, inclusive. A favela perto de casa, o Colégio Militar, o português da mercearia. Que eu catava jornal velho e ia vender, eu nunca tive mesada.

E entre todas teve alguma que te marcou mais? Que você viu que podia ser um caminho?

Talvez o movimento hippie. Me impressionou demais, eu era moleque. Quando eu cheguei na estrada, pegando carona, cabelo cresceu, as pessoas diziam: “ah, você é hippie”. Eu dizia: “não, sou um viajante…” não assumi um rótulo. Os new hippies, hippies de 1980, já não tinham mais pensamento, filosofia, um ou outro tinha. Ficou só o resquício. O sistema atacou o movimento hippie de uma forma brutal. Acho que o movimento hippie ameaçou o sistema muito mais que todo o tempo de partido comunista que existiu. Porque as pessoas não diziam o que fazer, elas viviam. E isso contaminava. Você precisava ver as praças de artesanato, como as pessoas se encantavam com as ideias que elas estavam ouvindo. Os caras estavam falando o que elas viviam, não estavam denunciando. “Não quero vencer na vida. Quero ser irmão de todo mundo”. Isso pega pelo sentimento, não pela razão. Aí o sistema que tinha desprezado os hippies no comecinho começou a perceber o poder de contaminação da ideologia, e aí eles começaram a ser massacrados. Eu me lembro quando os bandidos que antes tinham chapéu preto e faziam bang-bang passou a ser um cabeludo barbudo que matava, roubava. (A ameaça) comportamental era muito mais profunda que ideológica porque envolvia sentimento. Coisa que pessoal ideológico não percebe, diz que sentimento é bobagem.

OS FILHOS E A ESTRADA

Uma coisa interessante é que parte de sua vida (na estrada) foi com teus filhos…

Não, eu saí sozinho. Logo constituí família.

Como é estar na estrada com a família?

É muito bom, pras crianças é muito divertido. Pra gente é um pouco… a gente tem prestar mais atenção, não pode ficar em qualquer canto, tem que manter uma saúde, procurar onde que tem alimentação natural. Tem que tomar certos critérios. Então me preocupava com alimentação, higiene, lavar roupa toda semana. Tinha sempre isso em mente.

Não prejudicou nada pra eles, questão da saúde?

Nada. Nunca tiveram nada. Tiveram catapora, e eu vi que era catapora, nem viram médico. Fui tratando com chá, erva, cebola, sei lá, na época eu me virava, e dava certo. Banho de permanganato quando surgiram as feridas. Estava tranquilo.

Na sociedade parece que ainda tem um tabu. Pra muita gente é maluquice. Sair sozinho até vai, mas com as crianças…

Meu irmão, a sociedade é uma maluquice. Eu não posso fazer uma maluquice pior do que essa. Se a sociedade, do jeito que ela é, acha que o que eu faço é maluquice, pra mim está bom. Ruim seria se achasse normal. A sociedade, essa porcaria que a gente vive, é exatamente (assim) porque as pessoas pensam como tais. Não me servem de referência os valores sociais.

ENVOLVIMENTO COM A ARTE

E o teu lance com as artes visuais?

Foi a forma que encontrei de dizer o que penso.

Poderia ser de outra forma?

Qualquer jeito, que me permitisse dizer o que penso. Eu desenho desde criança, não me desenvolvi em belas artes. Tecnicamente, minha arte é medíocre. A técnica de minha arte é suficiente para dizer o que eu quero. Era o recurso que tinha pra fazer.

E esse negócio de expor em galeria, que época foi?

Foi de 1998 a 2002. Foi interessantíssimo. Pude conviver com o meio social que nasci, que já estava distante muito tempo. Estava entrando nessa mesma classe pela porta dos fundos, como um servidor, um artista. Comecei a perceber a mesma mentalidade que eu via na minha infância, adolescência. Pude fazer várias experiências. Via aquela mentalidade conservadora, retrógrada, de que pobre só é pobre porque é preguiçoso. E eu, com carinho, tentava mostrar pra ele como ele estava equivocado. Ia levando a conversa devagar. E quando o cara percebia o que eu estava querendo dizer, velho, ele mudava completamente, já ficava hostil.

Você podia continuar fazendo esse…

Não podia. A vida começou a ficar hostil de novo. Comecei a ficar triste, ficar deprimido, precisava ir pra rua.

“O MEDO É CRIADO”

Onde eu vi a humanidade mais bonita foi nas partes mais pobres. Quando eu pedia comida nas partes ricas da cidade me davam as sobras, o resto. Quando eu fui pedir nas periferias as pessoas me levavam pra dentro de casa, dividiam o que tinham comigo. Essa classe eu percebi sabotada, inferiorizada. A sociedade vive às custas deles. Quem planta o que a gente come, costura o que a gente veste, carregou o cimento nas costas pra construir essas paredes? Essa classe é sabotada, mano, nego rouba a educação que eles tem direito de ter. Qualquer um que tenta investir em educação é massacrado. Olha o que fizeram com Brizola.

Estou no grupo humano. Nosso grupo é grande. As pessoas não se deram conta ainda, então formam pequenos grupos. E muitos grupos são formados por pura insegurança, em busca de apoio, porque não têm segurança para viverem sozinhos, têm medo.

Uma defesa né?

É. E na minha visão é tudo controlado, tudo intencionado. O medo é criado para que as pessoas se agrupem e se dividam e não se vêem. É um contra o outro, um grupo contra o outro. A competitividade tem que ser induzida ao máximo. A ideia de vencer na vida tem que ser implantada geral. Não basta só viver, tem que vencer na vida. Ou seja: tem que produzir derrotados, tem que estar em conflito, em confronto, tem que estar se comparando. Mas isso é planejado. E isso é fonte de angústia, de sofrimento para a grande maioria das pessoas.

“REFLITO ME RELACIONANDO”

Quando você acorda de manhã e tem que pensar “o que eu vou comer?”, você não fica elucubrando muito, não fica remoendo as coisas. Não tem tempo. Você acorda de manhã, “onde é que tem água? Onde é que tem padaria?” Se tem uma grana, se não tem, tem que vender rápido, vou em porta de escola pra arrumar uns 10 contos pra poder comer, tomar um suco.

Mas as duas coisas. As pessoas não pensa sobre os problemas, mas talvez não tem espaço também para…

Refletir? Meu irmão, eu reflito enquanto estou me relacionando. Quando estou na porta de escola eu estou olhando pras pessoas, me relacionando, vendo as mentalidades, refletindo. Não é uma coisa que tenho que forçar pra fazer, é natural.

É, mas pra ti, não sei se pra…

Não sei pra quanta gente é, mas pra mim é. Estou sempre ligado, ligado, ligado. O que não dá nenhuma vantagem. Às vezes eu tenho vontade de desligar pra não pensar em nada. Às vezes eu deito na cama pra dormir e é tanta coisa na minha cabeça que eu não consigo. Fico acordado, deitado, de olho fechado, tentando dormir e pensando, pensando, pensando.

EXPERIÊNCIA COMO PALESTRANTE

Uma frase que eu achei no seu fanzine (Pençá): “Não acredito que tenha uma mudança sem que todos estejam envolvidos”. Aí todos inclui todas as classes. Como é esse trabalho de envolvimento, por que tem um trabalho diferente pra classe mais pobre e a rica também, né?

Claro. É outro código, mano, outro linguajar, outro comportamento, outro tipo de comunicação.

E como você faz pra tentar despertar esse interesse tanto da classe rica quanto mais pobre?

Velho, eu não tento. Tenho minhas vivências de origem, dentro da universidade, e a de décadas, dentro das periferias.

Nas suas palestras, por exemplo.

Por exemplo: fui pra Foz do Iguaçu, convidado pelo TED (grupo que organiza palestras pelo mundo), no Centro de Convenções Cataratas. Fiz a palestra lá, com o linguajar adequado pra aquele público, que come em restaurante cinco estrelas, fica em hotel cinco estrelas. No dia seguinte fui fazer a palestra no bairro mais pobre de Foz do Iguaçu, que foi feito com restos de outras favelas. Nessa palestra eu falei outra língua. Não fui movido pela razão. O código era outro, e eu conhecia o código. Lá no TED eu abordei a falta de sentido dos valores que nos apresentam, usufruir, desfrutar, consumir. Eu contei minha vida, e frisei bem a opção que fiz dentro da universidade, a vida que me apresentavam e a vida que optei. Na favela eu falei de auto estima. Do valor que a classe mais pobre tem, a capacidade de superação que existe ali e que as pessoas não têm consciência. E como a televisão é inimiga, adotando valores, produzindo desejos de consumo impossíveis. Porque a sociedade não se sustenta só no consumo compulsivo não. Ela se sustenta no desejo de consumo dos que não podem consumir, porque são esses que constroem o que é consumido.

Como é pra você essa experiência de dar palestra?

Não é a mesma coisa, mas é como na rua. Passam grupos, e eu falo com esses grupos de acordo com o que percebo desses grupos.

Você gosta, te dá prazer?

Não é que eu goste, eu preciso. Eu preciso falar o que penso, botar no meu trabalho, trabalhar com o que eu penso. A palestra não foi uma escolha minha, foi uma convocação da vida.

Mas você fala da necessidade de se expressar ou de querer atingir o outro pra despertar um jeito de pensar?

Causar pensamento, causar reflexão. Questionar valores. O que vai fazer com isso, não é problema meu. Preciso botar pra fora.

NÃO GOSTO DAS MINHAS OPINIÕES

Eu sempre tenho cuidado com opiniões otimistas porque muitas vezes a gente analisa a realidade com interferência da vontade da gente. Quando você analisa a realidade com interferência da sua vontade a tendência é chegar a uma conclusão mais conveniente. A maioria das minhas opiniões eu não gosto. Achar o mundo uma merda? Uma insuficiência constante, uma inconsciência arretada, uma desumanidade geral, usufruintes de privilégios cagando com o sofrimento da maioria…

Você não gosta dessa opinião?

Não gosto, gostaria de estar errado. Gostaria que as pessoas fossem solidárias, que não fossem esses filhos da puta que são esses dominantes, que controlam políticos e mandam varrer uma favela porque tem interesse mobiliário lá. Aquelas centenas de família que estão lá não tem menor importância pra esse cara. Eu gostaria que estivesse enganado e não existisse esse tipo de gente, mas acho que é esse tipo de gente que domina a sociedade.

Eu não defendo as minhas opiniões. Nego: “ah, você tem que defender suas opiniões”. Eu não gosto das minhas opiniões. Me convença que elas estão erradas. Eu vou te agradecer se você conseguir. Mas provavelmente você não vai conseguir.

Ninguém vai.

Talvez, sei lá. Eu já mudei de opinião muitas vezes.

Por exemplo.

Uma peça que eu estava vendendo. Cheguei numa mesa, o cara começou a olhar. “Essa peça aqui eu acho uma babaquice”. A mesa ficou em pânico, achando que eu ia agir agressivamente. E eu: “por quê”? E ele, “por isso, por isso, por isso”. Me explicou e achei que ele tinha razão. “Pode crer, você tem razão, cara”. Aí tirei o broche, ficou todo mundo olhando, joguei no chão e pisei em cima.

Luciano: o que estava escrito no broche?

Uma babaquice, não vale a pena. Aí o pessoal da mesa: “pô, você podia dar pra gente”. A partir do momento que eu achei isso uma babaquice, não sai mais da minha mão.

MARXISMO E REVOLUÇÃO SOCIAL

Luciano: Você leu Marx?

Algumas coisas. Achei extremamente chato, teórico. Você pode medir uma ideologia pelas consequências dela. Como é que os caras se comportam? A maioria é arrogante pra cacete, falam língua que o povo não entende, têm medo de favela, vivem na classe média, é ofensivo quando as pessoas não concordam com ele. A maioria, não são todos. Mas só a convicção de que você está com a verdade torna você um elemento religioso, vamos dizer assim. Você trabalha com dogmas. Eu não, trabalho com dúvidas, prefiro.

Luciano: Vou ler uma frase e queria que você comentasse: “No processo histórico, os sectários comportam-se como inimigos, consideram-se donos da história. O sectarismo pretende conquistar o poder com as massas, mas essas não participam do poder. Para que haja revolução das massas, é necessário que essas participem do poder”. Do Paulo Freire.

Participem? Acho que tem que determinar. Tem que controlar o poder, ser o poder.

Luciano: Isso é participar.

As massas são o poder, cara, só não sabem disso. Marx defende a ideia que existem quadros mais preparados pra serem lideranças. Meu irmão, é convenção, controle. Você não pode fazer revolução se você reproduz condicionamento. O controle é condicionamento, a disputa é um condicionamento, a competitividade é um condicionamento. O que aconteceu lá (na Rússia)? Um bando de intelectual que tomou o poder, não instruiu o povo e estabeleceu formas de controle. É uma reprodução do condicionamento humano. Em vez de ser econômico passa a ser político, ideológico.

Como se supera esses condicionamentos?

É vontade própria, mano, querer. E os caras não querem, não olham pra dentro de si, querem consertar o mundo mas não se consertam. Ele é tão arrogante porque fez um curso superior – como é que botam um nome de curso de superior? Se sabe mais do que os outros você tem que ter maior responsabilidade, tem que ser mais cobrado, não tem que ser superior. Você tem uma vivência que eu não tenho, você planta e colhe pra comer, eu não sei o que é isso, eu tenho que comprar. Tem que haver um sentimento de igualdade.

Luciano: Você falou da Rússia, de como os intelectuais tomaram o poder. Você tem o Bakunin: “tão logo os operários tomem o poder, não mais serão operários…”

Foi uma discussão dele com Marx. “Não mais olharão o povo como operário, mas de cima do Estado.

Luciano: Tu acha que essa questão da hierarquia é um questão intrínseca do homem?

Não. Pode ser até uma índole, mas é uma índole a ser superada. Acho que a gente vai superar isso no decorrer dos tempos. Mas não é pra agora, não é pra essa geração e nem na próxima, isso vai ter que ser diluído aos poucos. É um esforço a gente se sentir igual. Em mim esse é um esforço constante. Não posso dizer que sou bem sucedido, mas é uma preocupação que tenho, o sentimento de igualdade. Assim eu respeito todo mundo, e assim eu obtenho muito mais benefícios da existência do que me hierarquizando.

Luciano: Será que a luta de classe um dia acaba, com vencedores e perdedores?

Não vou usar o termo luta de classes, um termo marxista que pra mim não diz muita coisa. Uma vez, na favela, um camarada meu falou uma coisa muito simples e muito óbvia: “luta de classes, que porra é essa? Não tem luta quando um lado só apanha e o outro lado só bate”. Não tem luta de classes, tem massacre de classe.

Luciano: Sempre terá?

Não, que sempre, mano. Sempre inclui a eternidade. Eu penso que muito antes da eternidade chegar ou terminar, isso muda. Estou vendo movimentos nesse sentido.

CURTIDO PELA VIDA

Tem uma frase que eu li no teu fanzine: “Não estou aqui pra curtir a vida, mas pra ser curtido por ela”.

Pra sair melhor do que entrei. Não estou aqui de bobeira, não comecei quando eu nasci. Minha razão não alcanço, mas o sentimento eu alcanço.

O que a vida pode curtir de você?

Pode curtir em mim? Pô, cara, tudo que eu tenho que não presta. O que é você curtir (fazer o curtimento de) um couro? É tirar dele o que não presta. Ser curtido pela vida é aprender com ela, crescer com ela. E você não cresce pisando em flores. Nós estamos em um nível primitivo. A gente cresce ralando. Acho que o nosso nível evolutivo é tão primário que a gente tem tendência a se acomodar sempre que tudo fica bem, materialmente. Então a gente precisa da dor, pra fazer a gente andar. O sofrimento no planeta é muito grande. E muitas vezes é difícil a gente se conformar, com tanta grana, com tanta tecnologia, com tanta condição de acabar com esse sofrimento.

Por que você acha que tem tanto sofrimento?

Aí, meu irmão, esse achar não é racional, é intuitivo, é espiritual. Tem tanto sofrimento porque as pessoas precisam sofrer pra crescer, pra aprender, pra se melhorar. Quando a gente perceber que se melhorar é a função da vida, acho que o sofrimento vai deixar de ser necessário. Mas isso é a longo prazo.

Uma coisa da gente crescer sem precisar do sofrimento pra impulsionar, é isso?

Por interesse próprio. A tendência geral não é o interesse pelo melhorar, pelo aprender, se desenvolver. O interesse é o usufruir, o desfrutar, o que é uma acomodação, um estacionamento. Você pára de crescer.

Luciano: Mas uma coisa é você usufruir do presente, viver cada dia. Outra coisa é usufruir do presente atrelando esse viver ao seu usufruto material.

Estou falando desse caso porque esse caso é preponderante. Não estou falando aqui de exceção à regra. Usufruir a vida pra mim tem outro sentido. Mas o que é colocado como usufruir da vida está ligado à materialidade simplesmente. As principais necessidades do ser humano, na minha opinião, são abstratas. É o desenvolvimento interno, do sentimento, da solidariedade. Do sentimento de pertencimento a toda a humanidade, e não a pequenos grupos. O desenvolvimento no sentido de você perceber que o egoísmo te prejudica, te inferniza a vida. A generosidade melhora a vida. As pessoas esquecem de prestar atenção no sentimento que elas permitem que cresçam dentro delas e que elas produzem à sua volta. As pessoas não levam em conta, e sofrem consequências direto, direto, em si e no seu entorno. Afastam as pessoas mais tranquilas e mais bacanas e ficam em contato com pessoas conflituosas como elas. Todo mundo competindo, um querendo ser melhor que o outro. Porra, velho, isso só serve a um punhado. Que está dominante, que não está competindo com ninguém. É dominante, compõem com outros dominantes, que compram políticos em campanhas eleitorais, determinam políticas públicas e controlam grande parte da sociedade. Não são tantos assim, mas são suficientes para dominar todos os setores: energia, produção de alimento, cultura. Arte, mano, transformada em mercadoria.

“É MUITA GANGA ANTES DE PENSAR EM SER PEPITA”

Uma outra frase, que não é tua, mas que um garimpeiro te disse uma vez: “A humanidade é que nem um garimpo. Se você quer encontrar as pepitas você tem que se sujar e educar o olho”. O que você diria para quem quer ser essa pepita de ouro ou pra quem quer encontrar essa pepita de ouro?

Meu irmão, como é que você quer ser pepita de ouro? Eu não quis ser pepita de ouro. Eu quero ir tirando a ganga, a sobra do minério que não presta. É muita ganga antes de pensar em ser pepita. Todo mundo é uma pepita cheia de ganga. Cabe a cada um ir lapidando.

E cada um descobre a própria forma de tirar as gangas de si mesmo?

Vai ter que descobrir, né parceiro. Você não pode limpar o outro, não pode corrigir o erro alheio. Pode dar um toque, mas a resolução é de quem está envolvido, quem está fazendo, quem está vivendo.

E o teu meio de se livrar das gangas é através do teu trabalho?

Através das minhas relações, principalmente. Eu não estou procurando a perfeição, apesar de eu saber que estou me aperfeiçoando. É uma melhora progressiva, pra todo mundo.

“NÃO FOI CORAGEM, FOI MEDO”

A gente vê no teu blog, nos vídeos, que a galera admira, curte suas ideias…

Alguns em excesso, e alguns estressam também.

Mas o que eu vejo é que muitas pessoas gostam, mas sempre tem aquela coisa: “pena que não tenho coragem de fazer isso, não tenho coragem”.

O que é coragem? Já sentiu coragem? Eu nunca senti coragem.

Foi natural?

Não, foi medo. Medo de uma vida sem sentido. Olhei pra aquilo na minha frente e falei: “caralho, mas é isso? Não pode ser isso. Tem que ser outra coisa, se não não serve”. Uma frase que eu falei naquela época: “se é pra viver assim, prefiro não viver”. Tem que haver uma outra opção.

A pergunta que eu vou fazer na verdade você não pode responder: Por que com tanta gente se identificando com suas ideias acabam não fazendo?

Se olhar dentro de si vai perceber. Tem gente que fica esperando a solução vir de fora. Cada um tem seu motivo, cada um tem um medo qualquer, uma prisão qualquer. Eu entendo um cara que tem que manter a mãe doente, tem que se atrelar ao sistema e não tem outra opção. Me solidarizo com o cara, me dói essa situação. Mas esse eu posso entender. Agora, o que não tem? “Não, meus filhos são acostumados com muita riqueza, com muita facilidade”. Meu irmão…

RAZÃO E SENTIMENTO

Você fala muito do sentir, em suas entrevistas, palestras.

Acho que o sentir tem que estar acima do raciocinar.

Tem coisas que, digamos, só pelo sentir a gente é capaz de conhecer?

Não sei mano, não gosto da expressão “só”. Mas com o sentir você vai muito mais longe, muito mais profundo. Quando você quer racionalizar você limita, cria barreiras. Não pode, por exemplo, um cara que você acabou de conhecer, falar assim: “esse cara é um pilantra”. Racionalmente isso é absurdo. Mas intuitivamente… pô, quantas vezes.

Você me falou (antes da entrevista) alguma coisa de frequência vibracional…

É, mas aí já é uma interpretação minha. Acho que todo mundo emana uma frequência vibracional. Você já sentiu, está num grupo e de repente uma pessoa se aproxima, já sentiu uma sensação desagradável, uma sensação agradável?

Total, todo dia.

A figura emana, cara. Todo mundo emana, é a impressão digital de cada um. E isso é formado pelos seu caráter, objetivos de vida, visão de mundo, sentimentos, temperamento, todo o corpo abstrato do ser: tudo o que você pode falar alma, espírito, o que nós somos de verdade. Eu olho no espelho e não sou aquilo que estou vendo. Aquilo que estou vendo vem mudando desde pequenininho e eu sou a mesma pessoa. Daqui há pouco eu deixo isso aqui pra viver viver outra experiência.

MENOS MORAL PRA RAZÃO

Um dos golpes fatais na minha tendência ao ateísmo se deu num centro de candomblé. Um dia me chamaram para uma festa. Só que na comemoração quem estava participando eram as entidades, velho. Tinham várias pessoas que eu conhecia que eu olhava pro cara e não era o cara. Aí parou uma cantoria e foram todos para o ambiente do lado. Tinha uma porta e uma cortina. Aí a entidade mestra que era minha vizinha, uma coroa negra: era um homem; mano, eu olhei no olho e eu vi que não era ela. Aí foi passando todo mundo, um por um. Eu fui por último, curioso, e quando eu fui passar ela botou a mão no meu ombro, olhou no meu olho e falou assim: “você não acredita em nada né meu filho”? Aí eu tomei aquele choque, comecei a procurar uma resposta. E ela fez assim: “não, não. Não interessa o que a gente acredita, interessa o que a gente faz. O que a gente acredita muda assim ó (faz um estalar de dedos). O que a gente faz é o que é importante”. E me passou pro outro lado. Aí que eu cheguei à conclusão: a gente não pode dar tanta moral assim pra razão da gente não, cara. Dá mais moral ao sentimento.

É, deram tanta razão que está no que está.

Olha a sociedade. A maior moral que tem na sociedade é a razão. É a pós graduação, doutorado, pós doutorado e pós, pós. E você vai ver os caras e os caras tem problemas afetivos. Tem angústias incríveis que escondem de todo mundo, dá pra perceber no semblante, eles chegam e o ambiente muda. Porra velho, coisa horrível ser assim. Isso que é ser o bom na sociedade? (Risos) eu quero é ser o ruim. Quero desconsideração total.

***

Vou falar algumas palavras nessa parte da entrevista e você diz a concepção que você tem sobre elas, o que você pensa sobre elas. Aí a primeira é arte.

ARTE

Veículo. Ferramenta. A opção é do artista. Tem gente que chega na minha área e fala: “Ah, arte é divina”. Que é isso, cara? A arte é um instrumento de comunicação. Você se comunica com o ser abstrato, o sentimento, a opinião, conceitos. É um veículo de comunicação com a alma, vamos dizer assim, com o espírito do ser humano. Você pode trabalhar no sentido de libertar, de aprisionar. Quem vai negar que não tem arte de alto nível sendo usada na publicidade? É arte usada no sentido de aprisionar, é diálogo com alma.

Mas se arte é uma comunicação, nossa conversa pode ser uma arte, por exemplo?

Não.

O que faz uma comunicação ser arte ou não?

Não: o que faz a arte ser comunicação? A intenção do artista. O que é arte, mano? Arte é uma criação. É você ter uma concepção imaterial e materializar. Essa é a função do artista.

Você vê diferença quando falam em arte marginal, arte elitizada?

Meu irmão, isso é papo de sistema. Arte é arte. Arte marginal porque o sistema não absorve, ou porque está contra o sistema. Pra mim não diz nada.

arte militante?

Arte engajada? É a que busca mudança. Essa vem do artista angustiado. Vem do artista que quer trabalhar por mudança. Porque tem necessidade de sentir utilidade na vida nesse sentido. Sou um desses, com certeza.

Luciano: É oposição ao artista pavão.

Não é oposição, velho. Há artistas que se dedicam a desenvolver técnicas primorosas pra desenvolver quadros lindíssimos, deleitar o espírito humano. Vou dizer que eles não valem nada? Tem pinturas que eu paro, olho e “caraca”! Fui levado a expor numa galeria que tinha meus quadros que custavam R$ 2500, que eu iria receber R$500 se fossem vendidos, e tinha quadros de R$40000.Olhei o quadro do cara, uma floresta, nossa, parecia que estava em relevo. O cara tem a manha, deve ter estudado muito, deve ter um dom do cacete pra pintar. Eu teria que me esforçar muito pra chegar nesse nível de perfeição visual. Mas esse nível não me interessa.

No meio artístico ainda tem um preconceito com quem faz arte militante.

Não faço parte do meio artístico. O mercado não me considera e nem eu considero o mercado.

Mas participando de seminários, discussões, vejo que ainda tem preconceito.

Meu irmão, não sei, posso estar sendo precário, mas o artista não é um cara que tem uma sensibilidade a mais do que a média? Ele não está inserido dentro de uma sociedade que não é claramente espúria e perversa com a grande parcela? O cara tem sensibilidade e não se dói, não se incomoda com isso não, ele ignora isso? O cara tem uma sensibilidade mas ele não usa essa sensibilidade para a sociedade que ele vive.

Mas e se o cara usa a sensibilidade para outras coisas, para a estética apenas, por exemplo?

Não condeno, só não me interessa. Uma coisa que eu tenho sempre em conta é que tem gente sofrendo agora, enquanto a gente conversa aqui. De várias formas: tortura, em delegacia, em presídio, gente com saco na cabeça, agora, tentando respirar. Gente precisando de atendimento médico. Mas aos montes, aos montes.

TRABALHO

Vem de tripalium, instrumento de tortura. O conceito de trabalho é tortura, insatisfação. Pô, as pessoas não percebem como é bom trabalhar com o que a gente gosta. Minha vida e meu trabalho se misturaram. Eu trabalho toda a hora. Trabalho dormindo, acordo com ideia e já estou escrevendo. Eu adoro meu trabalho. Não penso em me aposentar, parece desistir de viver. Se aposentar é pra quem odeia o trabalho.

É uma questão de crença, então, achar que o trabalho é uma coisa negativa?

Crença? Não, é um condicionamento deliberado, planejado, implantado. Os caras contratam as melhoras cabeças que saem na universidade, especializadas em psicologia profunda do inconsciente, para implantar essas ideias na sociedade inteira.

DROGAS

Uma vez um policial me perguntou: “você consome drogas”? Falei: “não, por mim fechava todas as drogarias”.

E sobre as drogas que não estão nas drogarias?

Está falando de cocaína?

Todas: cigarro, álcool, cocaína.

Meu irmão, é parte da nossa realidade contemporânea. Está vendo o que está acontecendo no Uruguai? Estatizou a produção de maconha. Não entra mais maconha traficada lá, o Estado produz e entrega pra você.

Luciano: O que tu acha do crack?

É uma estratégia de extermínio de pobre, mano. Acho que ele foi criado pra exterminar pobre, pra imobilizar.

Criado por?

Pelo poder mundial, estou sempre levando em conta o poder mundial.

Luciano: Criado não, ele apareceu e é usado mesmo pra isso. Ele é a sobra da sobra misturada com qualquer coisa.

Fizeram, talvez, como recurso de primeira e tal. Mas neguinho pegou, percebeu e “nooooossa, isso é uma maravilha”. Divulga, espalha. Meu irmão, pros dominantes do mundo, eu imagino o olhar que eles lançam: “Pobre procria demais, é preciso haver mecanismos de contenção dessa procriação”. Matam os adolescentes. Na saúde pública, matam os aposentados, pra pararem de receber aposentadoria.

E sua relação pessoal com as drogas?

Eu não interpreto não. Bebo, fumo, me integro nos meios. Acho que eu deveria parar de fumar, até porque minha tosse está feia. Não sei porque acontece, um dia ainda vou entender. Uma criança de sete anos, uma vez em Porto Alegre, eu estava falando com um monte de gente e uma hora eu puxei um maço de cigarro do bolso. Aliás, puxar um maço de cigarro no bolso já me gerou várias experiências muito boas. Aí ela falou: “ué, mas você fuma?” Eu falei: “fumo”. E ela falou: “por que você fuma?” E eu falei: “porque sou um idiota, cara”. E aí: “nunca vi alguém dizer que é idiota”. “Mas todo mundo tem suas idiotices, cara, não tem ninguém que não tenha. E os mais idiotas são aqueles que não reconhecem isso”. E ela parou, olhou pro alto, demorou um tempinho e falou: “é mesmo”.

E na criação artística, o álcool, maconha, estimula alguma coisa?

Não necessariamente. Eu posso fazer qualquer coisa em qualquer estado em termos de desenho. Por exemplo: se eu for fazer um desenho a nanquim, caneta fina, 0,1mm,0,3mm, no máximo, na minha situação normal, eu vou estar fazendo e pensando no que eu preciso fazer, no que está faltando, na conta que eu tenho que pagar, no tempo que estou demorando. Se eu fumar um não lembro de nada disso. Eu começo a desenhar e entro no desenho. E fico desenhando o tempo que for necessário. Não estou lembrando dos problemas. E o desenho fica muito melhor, muito mais bonito.

POLÍTICA

Você acha que o que é apresentado para gente como política é política mesmo? Os caras que se chamam de políticos, são políticos? Ou são negociante do patrimônio público com os empresários?

O que seria um político?

Político sou eu. Políticos somos nós conversando aqui sobre a sociedade. Isso aqui é política. A política que está ligada ao poder há muito tempo deixou de ser política, se é que um dia foi. Foi criada pelos reis. O nosso parlamento foi criado por Dom Pedro I. A modelagem do Estado foi feita por punhados de pessoas, nobres, que se sentiam superiores e que modelaram a sociedade de forma a submeter a maioria e continuar usufruindo dos seus excessos.

Tem uma frase tua de que a política foi privatizada…

Faz tempo. Desde que empresário financia político pra ser eleito você tem funcionários de empresários na política. Aquilo é política? Da onde? Só na mídia mesmo.

E os sistemas de organização política, é…

Tudo que eu vi foi falcatrua.

Tanto capitalismo, comunismo, socialismo?

O que o capitalismo propõe, cada um tem que merece? Pô, isso é uma tremenda mentira. Não tem oposição capitalismo/comunismo. O comunismo, socialismo, propõe uma sociedade. O capitalismo não, propõe mentira. “Todo mundo é capaz de ficar rico”. Isso é mentira. O capitalismo é baseado todo em mentira. Eu fico pasmo de ver pessoas ilustradas, pós graduados, debatendo esquerda e direita. Não existe: a direita tem um monte de mentiras pra apresentar, a esquerda tem um monte de argumentos, teóricos, gente sem base, que tem medo de pobre. Então o que vou ver nessa política apresentada? Nada. Intelectuais brigando contra interesseiros. E ambos querendo dominar o povo.

MÍDIA

Que que você vê? Estuda o histórico: mentira, condicionamento, publicidade, formação de opinião pública sempre contra o próprio público, sempre defendendo os interesses empresariais. Que é a mídia? É parte da estratégia de dominação, nada mais. Sabota-se o ensino público, deixa o povo sem senso crítico, controla-se a mídia que fica dentro da casa do pobre dizendo pra ele que ele não vale nada porque não pode comprar roupa de marca, que ele é inferior, que o objetivo de vida é ficar rico e não viver em harmonia.

Você concorda com uma afirmação do Vito Gianotti (escritor e coordenador do Núcleo Piratininga de Comunicação) que a luta essencial para todas as lutas, educação, segurança, começa pela comunicação?

No momento sim. São as comunicações que fazem as pessoas não perceberam a importância da educação. Se fosse aberto e tivessem canais dizendo: “cara, educação é fundamental na formação do país, na formação das crianças que são os adultos de amanhã”… É preciso formar e informar essas pessoas. Se a mídia dissesse isso as pessoas iam começar a pensar. A mídia ideal, pra mim, seria aquela que mostrasse às pessoas as mentiras da sociedade.

Teu trabalho de uma forma é uma mídia, né? Nesse sentido.

Não gosto muito desse nome não, mas é um meio de comunicação, sem dúvida – se mídia é uma palavra que se aplica a meio de comunicação. É um meio da minha comunicação.

DINHEIRO

Sabe que eu passei uns meses sem botar a mão em dinheiro? Cheguei à conclusão de que o dinheiro é o mal do planeta, não quero botar a mão nessa merda. E eu tinha que trabalhar em troca de comida, ou então: “me dá, me dá aí”.

E quando você desistiu dessa ideia?

Quando eu percebi que o dinheiro é um padrão de troca. O problema não é o dinheiro, o problema está no ser humano, o problema é a ganância. O dinheiro em si é uma coisa muito boa. O problema é o abstrato, a capacidade de ser insaciável.

EDUCAÇÃO

Educação é uma coisa muito maior que o ensino. Educação é a preparação do ser humano pra viver em coletividade, harmônico. Não conheço educação. Não vejo, não acontece. Em alguns lugares tem, mas é uma coisa muito restrita, de iniciativa própria. Socialmente chega a ser insignificante.

Esse tipo de educação pode ser tanto não institucionalizada quando institucionalizada…

Meu irmão, a mídia educa. Educação parte de várias coisas e a maioria delas desequilibrada. Parte do egoísmo e da agressividade de um pai. Parte da competitividade da mãe, da preocupação com o que os outros estão pensando. Isso é educação, cara?

O que seria educação ideal tua?

Ideal eu não sei. Eu conheço pessoas vocacionadas pra educação. Essas pessoas não tem espaço, essas pessoas sofrem. Frequentemente tem problemas de saúde, neurológicos em geral. Querem fazer, têm dom, vêem o potencial das crianças e não podem investir, não podem desenvolver, cara. Imagina, que terror. Um monte de gente vocacionada. Meu irmão, todo mundo tem vocação. A maioria das vocações é espezinhada, vai fazer o que a sociedade te exige.

MORTE

Porta, passagem. Igual ao nascimento.

Passagem pro quê?

Uai, não é óbvio? Morte é a porta de saída, nascimento é a porta de entrada. Todo mundo nasce, todo mundo morre.

Será que depois essa porta de saída é uma de entrada pra outra coisa?

Como é que eu vou saber, mano? Quando eu passar por ela eu te responde essa. Não tem como saber, tem como sentir.

Que tu sente?

Que tem. Que eu entrei aqui e já vinha de algum lugar, não sei qual. Não sinto que eu tenha começado quando nasci. E o fato de eu ter tido filhos me fez perceber mais ainda. Eles não tinham nada de semelhantes entre si. Cada um de um jeito completamente diferente, cada um veio de maneiras diferentes, um temperamento diferente, uma bagagem diferente. Porque eles não nascem em papel em branco, trazem bagagem e dá pra perceber.

Tem medo da morte?

Não. Tenho medo do jeito de morrer. Tiro na barriga, horrível, né cara. Apodrecendo no hospital pouco a pouco. Um tiro na testa seria ótimo.

Você falou anteriormente que achava que não passava dos trinta anos. Porque acha que passou, foi sorte, predestinação?

Não sei o que é sorte. Eu passei porque eu tinha muita coisa pra dizer por aí, que está servindo ao mundo, pelas reações que eu encontro. Eu passei pra poder falar o que formulei, concluí, o que me parece. Eu estou sendo chamado pra falar em universidade, e nem graduação acadêmica eu tenho.

DEUS

Não sei. Não conheço a criação, velho. Está falando o criador do Universo? Eu não conheço o Universo. Como é que eu vou conceber o criador? Que pretensão é essa, que arrogância é essa, mano. Vou me sentir um idiota, um metido. Você já viu o tamanho do sol, dentro da galáxia que ele existe, a Via Láctea? É uma estrela anã, 98% das estrelas da galáxia são maiores que o sol. Há sistemas planetários com estrelas de primeira grandeza, duplas coladas uma na outra. Milhares de planetas em volta, em todas as direções, cara. A gente aqui na periferia da galáxia. Eu devo lembrar, só pra confundir um pouco, que são bilhões de galáxias. A nossa galáxia tem 100 bilhões de estrelas contadas. Eu não sei conceber o que é 1 bilhão de alguma coisa. Eu vi 1 milhão de pessoas na passeata das diretas, dois milhões no dia 20 de junho na Rio Branco e Presidente Vargas (no Rio de Janeiro). Mas 1 bilhão? É mil vezes isso, cara. E a gente num sisteminha, com uma estrela anã no meio, numa poeira cósmica, com uma civilizaçãozinha pequenininha, insignificante: estar em contato direto com Deus que toma conta de tudo o que tu faz dentro do banheiro, mano? Porra, francamente, não dá pra mim. Por que a gente não pode dizer simplesmente “não sei”? Qual é a dificuldade? Eu não sei como é que é não.

Então, por dedução, por existir tantas outra estrelas e galáxias e planetas, talvez possa existir outras vidas.

(Risos) É, pode crer, talvez. Pra mim certamente, mano, não tenho a menor dúvida. Se tem aqui, nesse planetinha, uma coisa micróbia em volta de uma estrelinha anã no meio de bilhões de estrelas, sistemas super complexos, só tem vida aqui? Está bom, cara, quem acredita nisso, está tranquilo. Eu acho absurdo demais. Óbvio, óbvio mano que se tem vida aqui tem vida pelo universo inteiro. “Ah, precisa de provas, como é que você prova”? Não, não estou afim de provar não. Concordo que posso estar errado. Você pode estar certíssimo e só tem vida aqui porque Deus quis assim. Pode ser, respeito, e espero ter o respeito também. Eu não consigo acreditar nisso.

Por dedução podemos dizer que há outras sociedades muito mais evoluídas que a nossa?

Ou menos. Pode ser, não sei. Acho que existem dimensões. Além da realidade material ainda tem muitas dimensões diferentes, todas invisíveis entre si. Vai dizer que não? Acho que tem muitos dimensões funcionando. Em que nível você pensa, em que nível você sente? Einstein criou a ideia de pluriverso. Dentre desse mesmo universo material, dos planetinhas, há outros universos de outro tipo de matéria que vibra numa frequência molecular diferente e que coexiste com esse universo material. Parceiro, o ser humano é muito pequenininho. Essas possibilidades é até possível da gente entender, tem outras que a gente não pode imaginar. Tem coisas que a gente pode entender, é preciso se dedicar a essas coisas. Eu vejo muita gente pensando em coisas inalcançáveis e não resolvendo o que precisa resolver no seu entorno, agindo de forma nociva pra si e pros demais.

E tua espiritualidade, você tem né?

Como não? Tudo tem espiritualidade cara, até o gato (o gato do Eduardo estava junto na entrevista) tem espiritualidade.

E a tua também é pelo sentimento né?

É, não tento explicar muito não. Eu vou até onde a razão pode, depois ela se recolhe à sua insignificância e aguarda tempos de maior evolução pra entender melhor.

Teve contato com muitas religiões?

Não sei se muitas, com várias. E respeito todas, e acho sempre que resvalam pra aquela ingenuidade: “eu tenho a razão, eu tenho a verdade e todo mundo que não concorda comigo está errado”. Acho muito infantil, né cara. Todas elas pregam o quê? A doação, a hospitalidade, a boa vontade, a não competitividade, a benevolência, a tolerância. Quantos executam isso? Pelo contrário. Geralmente são intolerantes, condenativos, soberbos, julgadores. Mas não são a maioria não. A maioria na verdade, velho, é uma enorme interrogação. A maioria vive na dúvida e vai de acordo com o vento. Não entendem muito bem o que acontece, e nem é dado a eles condições pra entender o que acontece.

AMOR

Uma palavra suja. Ela é direto usada na boca de hipócrita. Desmoraliza a palavra amor, vira uma coisa chata. É que nem quando você está conversando e alguém fala “Jesus”, você já olha pro cara: “hum… meu Deus do céu, lá vem aquela conversa”. Jesus, cara, Yoshua, imagina que tem uma história do caralho.

Você diz que tem uma depreciação da palavra amor?

Meu irmão, o amor verdadeiro é revolucionário. E ele é revolucionário porque é irrestrito, você dedica à humanidade em geral. As pessoas confundem muito isso: você dizer que ama a humanidade, então você faz papel de otário. Não é assim não. Amor é um sentimento que não te transforma em otário. Eu amo o pilantra, só não confio nele.

E você acha que está bem desenvolvido dentro de você esse amor?

Não sei, eu tento.

Você vê isso como uma meta?

Eu não vejo meta, eu vejo metas a serem alcançadas. À medida que você caminha você vai vendo mais longe o caminho, né? Eu não estabeleci uma meta pra chegar lá. Eu vou aqui, depois pra lá, depois pra lá, depois pra lá… o meu objetivo é seguir caminhando, não é chegar. Não sei se é pra chegar, ou se é só caminhar.

E o amor conjugal, como foi na tua vida?

Foi bem variado, quatro casamentos, né velho.

Mas chegou a pensar em questão de “amor pra vida inteira”?

Gostaria muito, mas não vi em nenhum momento. Acho que é um privilégio. Vejo casais de velhinhos, 70 anos juntos, e ali na maior harmonia. Pô, privilégio, cara. Mas eu tive várias experiências que era o que eu precisava ter no meu caminho.

E já foi prioridade no teu pensamento?

Tem sua importância. Mas principal? Principal é viver. A gente não pode deixar de viver por uma amor. Que amor é esse? Isso não é amor, isso é doença.

FELICIDADE

O que é felicidade, mano? Você tem ideia? Eu não tenho ideia do que é. Felicidade pra mim seria um mundo perfeito, seria ninguém sofrendo. Ninguém precisando de atendimento médico sem ter, ninguém ferido de bala, sendo torturado. Me chamaram uma vez pra fazer um esculacho (um protesto barulhento na casa) de um general que foi torturador. Não digo que está errado, mas me chamar pra isso? Tenho mais o que fazer, o cara é um velhinho, não tem mais condição de torturar ninguém. Aí mandei uma resposta assim: “você quer saber o nome de torturadores que estão torturando agora? Eu tenho condições de conseguir o nome de milicianos, delegados e policiais que torturam todos os dias na favela, só procurar no meio dos moradores que eu vou saber quem são. A gente divulga aí e vamos fazer esculacho na casa desses caras que estão torturando agora”. O cara nem retornou mais. Eles pensam que estão fazendo uma boa coisa, e de repente estão mesmo, mas eu não estou afim.

Então você pensa (na felicidade) em um lance mais coletivo, uma harmonia?

Eu gostaria muito, não sei se penso nisso. Eu fico pensando no que fazer, o que vou fazer hoje, amanhã, agora. Isso é mais importante. Acho que estou virado nessa direção, uma sociedade justa, que todos tenham atendimento. Quer fazer o quê: Taekwondo, judô, música, dança, pintura? Está aqui. O Estado têm condições de oferecer isso, não oferece porque está dominado por interesses empresariais.

***

REALIZAÇÃO E DECEPÇÃO

Você se considera uma pessoa realizada?

Não. Eu me considero uma pessoa se realizando. Acho que quando a gente se realizar a gente acaba, vira uma poeira. A gente está realizando, e no que realiza a gente se realiza. Tudo o que eu transformo em coisa real, o desenho, tudo isso estou colocando o que tenho pro mundo, oferendo o que posso, o que consigo.

E decepção, já teve alguma?

Decepção, meu irmão, você só tem quando cria expectativa. Quando você para de criar expectativa, você não tem decepção. Quando você faz uma doação, por exemplo, se você esperar gratidão de quem recebe você já não está doendo. Está cobrando, vendendo. Se a pessoa aproveita o que você deu ou não, problema dela. Você pode analisar você mesmo, se a pessoa não deu proveito, “eu não percebi que a figura não era capaz de receber o que eu tinha pra oferecer. Eu preciso desenvolver o meu discernimento para escolher melhor o que vou dar pra figura”. O que a figura pode aproveitar? Que posso oferecer? Pode ser ideia. Se eu vou dar, preciso levar em conta em primeiro lugar a mentalidade da figura, pra saber me comunicar com ela. Essa preocupação os teóricos, doutrinários, não têm. E ficam espantados que não conseguem mobilizar. Com respeito, com afeto, mano, você consegue muito mais comunicação.

Teve alguma mágoa muito grande que você já guardou de alguém?

Mágoa não. Se perguntar se teve sacanagem, teve, muita sacanagem. Mas não guardo mágoa nenhuma, todas me ensinaram, era o meu currículo. Era o que eu precisava aprender.

SOCIEDADE IDEAL

A gente já falou um pouco sobre isso, mas queria que você fosse mais fundo: se você tem alguma ideia de uma sociedade ideal.

Ideia não, sonho sim. Que ninguém sofra, mano, pelo menos não desnecessariamente. Onde ninguém morra de doenças curáveis, todo mundo tenha casa, moradia, onde não tenha gente com fome, ou ignorante, onde o conhecimento não esteja trancafiado em lugares inacessíveis.

E pra se chegar a isso?

Não sei. Pro mundo, não sei. Eu sei como viver mais confortavelmente nesse mundo, e é fazendo o que faço. Não tenho a convicção de viver a vida certa, porque a vida certa acho que não teria tanta carência de grana (risos).

MEDO E SAUDADE

Tem algum medo?

Já não tenho mais não. Medo do ego, talvez, de se descontrolar. Medo, sei lá, das minhas próprias pequenezas.

Quais, por exemplo?

Vaidade. As pequenezas comuns de todo mundo, egoísmo. Só que procuro ficar ligado. Não são boas coisas, não são bons geradores, geram energia ruim.

E saudade, tem saudade de alguma coisa?

De criança. Da minha neta, dos meu filhos quando eram criancinhas. Mas fora disso, sempre dizia que não tinha saudade de nada. Não sei se a palavra é saudade, saudade de amigos, de pessoas que eu convivi. Mas não é bem saudades, são lembranças que me dão prazer.

PLANOS

Tem planos?

Não tenho, seguir vivendo. Plano pra matar? Escrever livro, contar coisas.

Continuar teu trabalho, na verdade.

É. Viver, mano, é trabalhar. Pra mim vida e trabalho é a mesma coisa.

Mas você pensa em algo que pode aprimorar no trabalho, tanto conceitualmente quanto tecnicamente?

Acho que as coisas vão evoluindo. A gente vai fazendo e prestando atenção. No próprio julgamento do seu trabalho você vai evoluindo. Acho que é um processo natural, não é uma preocupação.

CITAÇÃO E APRENDIZADO

Você tem várias citações. Qual uma que você escolheria?

Não tem uma, tem muitas. Tem muitas… tem uma que eu fiz muito pouco porque ela não é muito estética pra você vender como quadro. É uma citação de Marilyn Ferguson: “Objetivos e pontos finais importam menos. Aprender é mais urgente que armazenar informações. Os meios são os fins. O destino é a viagem. Quando se percebe a vida como um processo, as velhas distinções entre vitória e derrota, sucesso e fracasso, desaparecem”.

Meio que parece um resumo…

Olha pra vida, mano, não é isso? É preciso perceber o que a vida é. A gente é convencido de um monte de coisa, a gente se apega num monte de ideias. Mas olha pra vida. Não é um seguir permanente? É óbvio que é um seguir permanente. É parte de um seguir que já vem vindo e vai continuar. É preciso saber como viver, como tratar o importante à nossa volta. Não está na explicação do universo. O importante está aqui à nossa volta, como tratar com a rapaziada, como conviver com as pessoas, com o meio que a gente vive. Esse é o foco. A minha espiritualidade eu exerço no meu cotidiano, cara. Não vou exercer no templo. Não me interessa o templo, já estou nele. Todo o tempo, de qualquer religião, me parece uma engabelação, cheio de coisa pra impressionar. Meu irmão, não estou encarnado, não estou aqui nesse corpo, convivendo com minha materialidade? Minha espiritualidade está convivendo com isso agora, o tempo não vai deixar de passar não. É simples, cara. Bem simples, aliás.

Pra terminar, um aprendizado que você quer deixar pros outros.

Como assim um aprendizado que eu quero deixar pros outros?

Algo que você aprendeu na sua vida que você quer compartilhar.

Ah, tudo, está no meu trabalho, velho. Tudo que aprendo na minha vida eu ponho no meu trabalho, não tem como resumir isso numa frase. Acho que aprender traz a responsa de ensinar e ensinar traz a responsa de aprender. Acho que é uma troca permanente.

***

Na entrevista completa:

– O batizado de sua filha;
– A estratégia para se integrar com os moradores de rua;
– “O mundo muda o tempo todo. A gente pode escolher como participar dessa mudança, nisso se resume nossa possibilidade”.
– Os detalhes de como começou a expor em galeria de arte;
– “Quando a raiva me assomou, eu tive contatos”;  
– Discussão sobre cultura, carnaval, blocos de rua, reforma linguística;
– “Quando falei, ‘vocês vão ter que escolher’, a resposta foi imediata: ‘com você, né pai, claro’. Até fiquei assim… que na minha cabeça de adulto de adulto, a mãe tinha muito mais segurança”.
– A importância da experiência no exército.

Mais sobre Eduardo Marinho:

Alguns de seus trabalhos;

A entrevista no Youtube que o fez ser mais conhecido;

Palestra na UFSC;

Palestra no TEDx Cataratas.